Mostrar mensagens com a etiqueta Luciano Severo de Almeida. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Luciano Severo de Almeida. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24626: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (9): Requiem para um paisano



Foto nº 1



Foto nº 2

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > 1969 > Sinchã Mamajã... Algures, numa tabanca do regulado de Badora, já no limite sul, fazendo fronteira com o regulado do Corubal; uma tabanca em autodefesa, reforçada pelo 3º Gr Comb, com os respetivos furrieis mlicianos, "periquitos": o Luciano Almeida (foto nº 1) e o Luís Graça Henriques (foto nº 2), junto a um dos abrigos e posando com o RPG 2 para a fotografia... O fotógrafo foi o Arlindo Roda, o grande fotógrafo da CCAÇ 12, juntamente com o Humberto Reis,

Fotos  © Arlindo Roda (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Zona Leste >  Regiáo de Bafatá > Sector L1  > BART 2917 (Bambadinca, 1970/72  >  Bambadinca  > 1970 > Uma das poucas fotos que temos do malogrado fur mil at inf Luciano Severo de Almeida,  do 3º pelotão da CCAÇ 12, que morreria, em circunstâncias desconhecidas (mas presumivelmente violentas), depois de regressar à metrópole.  

Foto (e legenda): © Vitor Raposeiro (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


À memória do Luciano Severo de Almeida 
(que terá morrido de morte violenta, já como paisano), 
 meu camarada da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 
(Contuboel e Bambadinca, 1969/71)
e de mais camaradas da Guiné, desconhecidos,
que morreram, de morte violenta,
por homicídio, suicídio ou acidente,
já depois do regresso á pátria.


Requiem para um paisano

por Luís Graça (*)


Disseram-me que tinhas morrido, meu infortunado camarada,  já depois do nosso regresso a casa. Talvez nos finais dos anos 70 do século passado, não posso precisar.

Morrido, "lerpado", para usar o nosso calão de caserna, bruto e feio. "Lerpado", assim, sem mais nada, sem uma palavra,  sem uma oração, talvez até sem um ai nem um ui, sem um grito de dor, sem um ato de contrição, sem direito sequer  a um último desejo, um cigarro, uma palavra de despedida... Imagino ou suspeito  que nem sequer tinha havido um xeque-mate, do tipo "a bolsa ou a vida!"... 

"Lerpado", morrido, de morte matada, morrido, como um cão, com um tiro na nuca, como os cães que abatemos (dezenas!|), uma noite, em Bambadinca, nessa alucinante e sangrenta  "Noite das Facas Longas", lembras-te?!... (Precisávamos de dormir, e eles eram uma alcateia selvagem de vira-latas,  famintos, sem-abrigo,  que todas as noites invadiam a parada, e uivavam às nossas janelas!)

Disseram-me que tinhas sido encontrado, morto, longe da nossa Guiné, dessa terra verde e vermelha que tu tanto amaste, longe da tabanca de  Sinchã Mamajã, e da morança da tua bela e sensual Fatumatá, de mama firme, que se escapulia para a tua morança, nas noites de cio e lua cheia, em que uivava a hiena (o "lobo", para os guineenses)… 

Longe do tarrafo do Geba, da Ponta Varela e do Poindom, do Mato Cão, dos Nhabijões, da Ponta do Inglês, da Missão do Sono, da Ponte do Udunduma, da orla da bolanha, do poilão, do bagabaga, do tarrafe… Longe de Bambadinca, de Badora, do Corubal,,,

Onde, afinal ? Não longe do lugar dos teus verdes anos, não longe do arco-íris do teu céu de menino, quiçá perto do estuário do teu Tejo, numa qualquer praia do mar da Palha, ou numa valeta suja de uma rua escura da tua cidade (S
e bem recordo, moravas no Afonsoeiro,  Montijo, na Rua Damão, rodeada de outras ruas com topónimos ultramarinos, Luanda, Ilha do Príncipe, Ilha de Sáo Tomé, Moçambique, Cabo Verde),,,

Em que encrencas te meteste, meu irmão ?  E com quem jogavas à lerpa, camarada ? Ou em que emboscada caíste, meu amigo ?  

Que morte tão crua, a ser verdade, oxalá fosse boato a notícia de fait-divers que alguém leu no jornal, a notícia de uma morte em que eu não te (re)vejo, nem nenhum de nós, teus velhos camaradas de Bambadinca.

Oxalá tenhas simplesmente desaparecido, emigrado!... Oxalá, tenhas sido sequestrado, tenhas mudado de código postal ou até de identidade, sempre era menos mal. Sinal ao menos, que estavas vivo, algures!... E poupavas-me este requiem, o teu elogio fúnebre, que é a pior das missões que se pode pedir a um camarada de armas.

Oxalá,  Inshallah, Enxalé!

Disseram-me (mas eu não quis crer) que tinhas sido morto, sem honra nem glória, depois de cumprido o teu dever para com a Pátria que te foi madrasta, cruel Jocasta.

Já depois da última nau da Índia ter naufragado no mar da Palha da tua infância, já muito depois dos últimos guerreiros do império terem feito o espólio de todas as guerras e o relatório da sua errância desde Quinhentos.

No século passado, meu amigo, no século transato, meu irmão!...

Lembro-me de o velho Uíge, navio da Companhia Colonial de Navegação, nos ter devolvido a terra, à nossa cidade e capital. Nas praias da Rocha Conde d' Óbidos, no cais de todas as saudades, no cais de pedra donde havíamos partído em 24 de maio de 1969, quase às escondidas, vindos do comboio noturno e soturno de Santa Margarida, do Campo Militar de Santa Margarida.

Não sei quem te esperava nesse dia 22 de março de 1971, mas seguramente os mesmos entes queridos (pais, manos, namoradas, noivas, mulheres...) que nos esperavam,  a quase todos nós, que ali, no cais, passávamos à condição de paisanos, depois de nos depedirmo-nos, a bordo, na noite anterior,  bebendo o último gole de uísque sem gelo e fazermos promessas de amizade para sempre. 

Vestidas as calças à boca de sino, e as camisas às florinhas que estavam na moda, na época,  regressávamos ao doce lar, com as exóticas bugigangas compradas c
om o patacão da guerra em Bissau, na loja do libanès Taufik Saad.

Regressávamos da guerra, com a morte na alma e mazelas no corpo, num navio, quase fantasma,  da marinha mercante,  o T/T Uíge.

Como se tudo continuasse como dantes e a vida corresse normalmente, "contra os ventos da história" (como então se dizia), nessa viagem de regresso à pátria servia-se a bordo, na chamada classe turística, reservada aos sargentos: (i) uma sopa de creme de marisco; (ii) seguido de um prato de peixe (pescada à baiana); e (iii) um prato de carne (lombo estufado à boulanger)... sem esquecer (iv) a sobremesa: a bela fruta da época, o bom café colonial, o inevitável cigarro a acompanhar um uísque velho, antes de mais uma noitada de lerpa ou de king...

Não sei se "lerpaste" nessas noites, se perdeste (ou ganhaste) algum patacão... Sim, esse 17 de março de 1971, em que largámos do estuário do rio Geba,  foi o primeiro dia do resto das nossas vidas...  E, nas costas da ementa de um desses jantares a bordo, talvez o do último dia, deixámos escritos os nossos nomes e moradas. 

Três de nós, que iam na classe turística,  já não estão mais entre os vivos, tu, o sargento Piça e o furriel António Branquinho... Bolas, já lá vai meio século depois do nosso regresso... E todos jurámos ficar amigos... para sempre !

Regressávamos ao lar e à rotina das nossas vidas, pequenas, insignificantes. E a uma outra guerra, a da lufa lufa do quotidiano, com outras picadas, com outras minas e armadilhas, com outras emboscadas e golpes de mão.

Tu tinhas um lar, todos tínhamos um lar, uma família, alguns um emprego, muitos uma namorada ou uma noiva ou uma mulher e até filhos à sua espera… Mas eu…, o que sabia eu de ti ? O que sabíamos nós uns dos outros ? E dos nossos sonhos de meninos que foram obrigados a crescer tão cedo e tão rãpido ?

Muito pouco, afinal… Casaste ? Tiveste filhos ? Não, não deves ter tido tempo e pachorra para ser pai, um bom pai,   e muito menos avô babado…  

Não, nunca mais voltei a ver-te,  depois desse dia 22 de março de 1969, ao longo de todos estes anos, em que tantas coisas aconteceram, para o pior e o melhor, na nossa Pátria...  
Uma palavra, repara, que saiu do léxico dos tugas, e já não se usa mais, a  Pátria... Afinal o que é a Pátria, camarada ? Ou era ?

Em 1994, encontrámo-nos,  alguns de nós, em Fão, Esposende, mas tu já não estavas no rol dos vivos... Julgo que foi aí que soube, pela primeira vez, da notícia de que tinhas morrido (segundo constava)...

A imagem mais forte, não a última, que retenho de ti, é a do menino e moço que saiu, fardado, garboso,  bem escanhoado, da casa de seu pai e sua mãe...É a imagem do puto reguila, quiçá rebelde, temperamental, belicoso mas generoso, da margem sul do Tejo. Com jeito para o desenfianço, o desenrascanço, que a vida era dura para os homens da CCAÇ 12, brancos e pretos. E com lábia para as bajudas de mama firme e para os "dubis", os putos da companhia, alguns ainda meninos de sua mãe.

Retenho ainda,  sem qualquer sentimento de pudor nem de culpa, 
a imagem do nosso patético duelo, numa noite de desvario,  no bar de sargentos de Bambadinca, tendo por arma, letal, uma garrafa de VAT 69. (Ou era Jonhnie Walker ? Ou White Horse, a tal do cavalinho branco ? Já não me lembro do rótulo, sei apenas que era scotch, e do bom, daquele que vinha From Scotland for the Portuguese Armed Forces with love!, da Escócia para os tugas com amor.)

Um duelo de morte, gole a gole, até ao gole ou golpe final, em menos de 15 minutos!... Com árbitro e tudo, apostas a dinheiro, mirones e claques de apoio, como mandavam as regras dos apanhados do clima de Bambadinca!... Já não sei quem ganhou: seguramente perdemos os dois...

Apanhados do clima, cacimbados, dizes bem, Exaustos, usados e abusados, filhos de Sísifo, filhos de um deus menor, condenados ao mais insano dos suplícios, uma guerra a que chamavam de baixa intensidade,  de contraguerrilha, do gato e do rato, de contrassubversão…

Não, não, era a roleta russa, ninguém tinha pistolas de tambor, era o fado lusitano, era o fado da Guiné, meu camarada, meu amigo, meu irmão.

Era a nossa triste condição, era a nossa quiçá estúpida, mas viril, maneira de matar… o tempo, o escasso tempo de lazer em tempo de guerra, , cronometrado, o tempo de espera entre uma operação e outra, o tempo de espera que podia ser entre a vida e a morte, que estava quase sempre emboscada nos trilhos que levavam do Xime à Ponta do Inglês. 

Era a insanidade mental, era a raiva, traiçoeira, era a lucidez da loucura a tomar conta de nós….

Foi esse fado que te matou, essa maldita toxina, essa adrenalina, que trouxeste das águas do Geba e do Udunduma, e das bolanhas do Corubal, do cacimbo das manhãs de Sinchá Mamajá, e que te impedia de parar para pensar, simplesmente parar, simplesmente pensar, simplesmente viver, simplesmente respirar à tona de água. meu irmão, meu camarada, meu amigo.

Foi o sobressalto da vida, foi a vida em sobressalto, foi a vida em saldo, foi a alma em carne viva, foi a dor em lume brando... 
Foi isso que te matou. No pós  guerra, na guerra dos paisanos.

Foi isso, foi a Guiné que te matou. Ao retardador.

© Luís Graça (2015). Revisto em 6set2023



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Carta do Xime (1955) (Escala 1/50 mil) Subsetor de Bambadinca > Detalhe > Tabancas fulas em autodefesa, Samba Juli, Sare Adé, Sinchã Mamajá e Sansacuta, situadas entre os rio Quéuol e Timinco, a leste da estrada Bambadinca-Mansambo. na frinteiras entre os regulados de Badora e Corubal 
Sansancuta faz parte dum eixo de aldeias estratégicas, como se diz no Vietname, no limite sul do regulado de Badora, no Sector L1, e que funciona como uma espécie de pequena muralha da China, cortando as linhas de infiltração das forças da guerrilha que eventualmente se dirijam para o interior daquele regulado a partir do rio Corubal (infiltração facilitada pela retirada de Madina do Boé, Béli,  Ché-Ché, Madina Xaquili...) Estavam ali reagrupados os habitantes de três tabancas, uma das quais Sare Ade cuja população, sobretudo os mais jovens, não se conformou com a ordem de deportação dada pelo comando militar de Bambadinca, tendo fugido para o nordeste (Gabu) e inclusivamente para o Senegal, que também é chão fula.

Lugares que continuam no nosso imaginário, ao fim de mais de meio século, fazendo parte das nossas geografias emocionais...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)
____________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 30 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24599: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (8): Bonjour tristesse!

(...) Nada fazia prever, quando o Teodoro nasceu, que estaria predestinado a ser padre. Pelo menos não havia nenhum sinal exterior dessa predestinação, desse chamamento de Deus.

− Nenhum rasto de estrela ou cauda de cometa a apontar para a minha casinha de xisto. (Apesar de tudo, sempre era melhor do que a loja da vaca e do burro, em cuja manjedoura nascera o Menino Jesus, em Belém.) − comentaria ele, com um misto de ironia e melancolia, mais tarde, em 2008, quarenta anos depois da sua partida para França, onde fixara residência. Nunca mais voltara à sua aldeia, na Serra da Lousã, a não ser então, depois da reforma. (...)


Postes anteriores da série "Contos com mural ao fundo":

21 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24572: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (7): Sozinho, como um cão

(...) Estive no seu leito de morte. Um fatal cancro dos pulmões, porventura curável nos nossos dias, roubara-lhe a vida, há uns trinta anos atrás. Teria hoje os seus 80 anos, se fosse vivo. Morreu jovem, demasiado jovem.

Era um dos meus heróis da adolescência, o Doc. Tinha lentamente recuperado a alegria de viver, depois de uma grave crise que ele próprio qualificara de “existencial”. (...)


26 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24504: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (5): O "Felgueiras", de 1º cabo hortelão a comendador (1943-2017) (Parte I)

27 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24506: Contos com Mural ao Fundo (Luís Graça) (6): O "Felgueiras", de 1º cabo hortelão a comendador (1943-2017) - II (e última) Parte

(...) Conhecemo-nos, por um mero acaso, num casamento em Braga, a terra dos arcebispos (um dos quais, o Dom Lourenço Vicente, do séc. XIV, meu longínquo conterrâneo, senhor das terras da Lourinhã).

A história do "Felgueiras" já me tinha sido contada, muito por alto, pelo pai do noivo. Antigos camaradas da Guiné, tinham estado numa companhia independente, colocada no setor de Teixeira Pinto (hoje Canchungo), na região do Cacheu.

− Fomos e viemos no mesmo navio: para lá no "Niassa", para cá no "Uíge"... − acrescentou o Arlindo, o pai do noivo. (..)

20 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24491: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (4): Amigos para sempre!

(...) Foi o primeiro encontro da Companhia, depois do regresso da Guiné... Vinte anos depois (!)... Na Anadia, em 1991, o ano em que nasceu a Internet, pelo menos a Internet que conhecemos hoje, em que as pessoas estão familiarizadas com as redes sociais, e usam o telemóvel e o correio eletrónico.

A organização coube ao "Vagomestre", auxiliado pelo "Transmissões"... Não lhes foi fácil descobrir nomes, moradas, telefones e até faxes... E juntar "boas vontades". (Ainda não havia endereços de e-mail, comunicava-se por telefone, telegrama e fax.) (...)


8 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24459: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (3): Um tiro de misericórdia!


(...) Conheceste-o no Chez Toi, em Bissau. Ou melhor, reconheceste-o, de Tavira, do CISMI, do Centro de Instrução de Sargentos Milicianos. Haviam pertencido, ambos, à Companhia de Instrução comandada por uma figura impagável, um tenente gordinho, que, dizia-se, tinha-se coberto de “honra & glória” no Norte de Angola. Já esqueceste o seu nome, para bem da tua higiene mental.

Em Bissau, estavas hospedado naquela espelunca, de paredes de tabique, que à noite funcionava como boite. (Era assim que, na época, se chamavam, “en français, comme il faut!”, todas as espeluncas da noite, em Lisboa e, onde se bebia uísque marado, "de Sacavém", e havia umas miúdas de minissaia e cueca vermelha, peludas, que te faziam olhos remelosos, e cócegas no pescoço… Tinham unhas compridas, como os felinos, pintadas de um verniz vermelho horroroso. Faziam, pela vida, coitadas. E viviam nas periferias de Lisboa que cresciam então como cogumelos, em arredores como a linha de Sintra, começando na Reboleira.) (...)


(...) A guerra. Essa coisa tão primordial que é a guerra. Que estaria inscrita no nosso ADN, a acreditar nos sociobiólogos para quem o comportamento humano
seria geneticamente determinado.

A guerra é a continuação da evolução por outros meios, dirão os entomólogos, especialistas em insetos sociais. Para eles, a morte de uma ou de um milhão de formigas (ou de seres humanos...) é-lhes totalmente indiferente. Desde que triunfe o ADN, um projecto de ADN musculado, duma "raça" nova e superior... (Onde é que o leitor já leu isto?) (...)

8 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24379 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (1): À porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas...

(...) O que é que um gajo faz, das oito às nove, junto à entrada de um hospital, para mais oncológico ?

Aqui, esperas, desesperas, esperas. Que a esperança é a última coisa a morrer, diziam-te na tropa os gajos mais otimistas, os safados dos instrutores, sobretudo dos coirões, velhos, dos cabos RD, readmitidos, que sabiam que já não iam à guerra, nem nunca morreriam docemente pela Pátria. (...)

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14928: Manuscrito(s) (Luís Graça) (62): "I want you, dead or alive"




Vídeo (0' 06'') > Alojado em You Tube > Luís Graça


Lourinhã, Vimeiro, 18 de julho de 2015_Reconstituição histórica da batalha de 21 de agosto de 1808 e mercado oitocentista. Vídeo: Luís Graça (2015)




"I Want you, dead or alive"
por Luís Graça (*)


À memória do Umaru Baldé, (que morreu de sida e tuberculose, no terminal da morte que dá pelo nome de Hospital do Barro, em Torres Vedras);

do Abibo Jau (, o gigante do 1º Gr Comb da CCAÇ 12., fuzilado em Madina Colhido);

do Abdulai Jamanca (, cmdt da CCAÇ 21, fuzilado em Madina Colhido);

do Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015);

do Iero Jaló (, o 1º morto em combate, da CCAÇ 12, em 8/9/1969);

do Manuel da Costa Soares (, sold cond, da CCAÇ 12, morto em Nhabijões, em 13/1/1971, por uma mina A/C, sem nunca ter chegado a conhecer a sua filha);

do Luciano Severo de Almeida ( que terá morrido de morte violenta, já como paisano);

e dos demais camaradas da CCAÇ 12 e da CCAÇ 21,
brancos e pretos,
mortos em combate
ou abandonados à sua sorte,
depois do regresso a casa
ou da independência da Guiné-Bissau;

ao José Carlos Suleimane Baldé,
felizmente ainda vivo, espero,
a morar em Amedalai, Xime
(e o único camarada guineense da CCAÇ 12
a integrar a Tabanca Grande);

a todos os demais camaradas da Guiné
que ainda hoje estão (sobre)vivos.




Foderam-te, meu irmão!
Enganaram-te, irmãozinho!
Traíram-te, amigo!
Deixaram-te para trás, camarada!

Não, não era este país milenário
que vinha no cartaz de promoção turística,
com montes, vales e charnecas,
com rios, praias e enseadas,
com fama de gente patriótica,
riqueza gastronómica
e forte sentido identitário.

“I want you”,
disseram-te eles,
e tu respondestes sem hesitar:
“Pronto!”.

Meu tonto,
disseste "presente!",
mesmo sem poderes avaliar
todas as consequências presentes e futuras
da tua decisão,
em termos de custo/benefício.

Decidiste com o coração,
não com a razão,
deste um passo em frente,
abnegado e generoso,
mesmo sem saberes
onde era o distrito de recrutamento,
e sem sequer conheceres
o teatro de operações,
o estandarte,
o fardamento,
a ciência e a arte da guerra,
o comandante-chefe
ou até mesmo a cara do inimigo.

Um homem não vai para a guerra
sem fixar a cara do inimigo,
sem reconhecer a voz do inimigo,
pode ser que seja teu pai,
mãe, irmão, irmã,
vizinho, amigo,
ou até mesmo um estrangeiro,
um pobre e inofensivo estrangeiro,
apanhado à hora errada no sítio errado.

Camarada,
um homem não mata outro homem
só porque é estrangeiro,
ou só porque não pensa ou não sente como tu,
um homem não puxa o gatilho
ou saca da espada,
sem perguntar quem vem lá!

Enfim, não se mata um homem,
de ânimo leve,
gratuitamente,
só porque alguém o elegeu como teu inimigo.

Não, meu irmãozinho,
não eram estes outdoors
e muros grafitados,
ao longo da picada,
não, não era este trilho,
que era pressuposto levar-te
do cais do inferno
às portas do paraíso.

Sim, porque no final, 
meu irmão,
há sempre alguém a prometer-te
o paraíso,
o olimpo,
o panteão nacional
ou cruz de guerra com palma,
em troca da dádiva suprema
da tua vida,
do teu corpo,
da tua alma.

Todos te querem,
todos te queremos,
“I want you”,
sim, quero-te, mas por inteiro,
quanto mais não seja
para tirar uma fotografia contigo,
não vales nada
cortado às postas,
decepado,
decapitado,
ou, pior ainda,
perdido, errático,
com stress pós-traumático
sem bússola nem mapa,
apanhado à unha pelo inimigo,
ou fuzilado no poilão de Bambadinca
ou de Madina Colhido.
Fuzilado, és um cadáver incómodo,
apanhado, és um embaraço diplomático,
pior do que tudo isso,
doente psiquiátrico.



Não, não foi este destino
que compraste,
com o patacão do teu sangue, suor e lágrimas,
enganaram-te, os safados,
os generais
e os seus ajudantes de campo,
os burocratas da secretaria,
os recrutadores,
a junta médica,
os instrutores
e até os historiadores.

“Guinea-Bissau, far from the Vietnam”,
alguém escreveu no poilão de Brá
ou na estrada de Bandim,
a caminho do aeroporto, tanto faz,
“Tuga, estás a 4 mil quilómetros de casa”.
Ou então foi imaginação tua,
pesadelo teu,
deves ter sonhado com essa placa toponímica,
algures,
numa noite de delírio palúdico,
deves tê-la visto
a sul do deserto do Sará.

Alguém sabia lá
onde ficava a Guiné,
longe do Vietname,
alguém se importava lá
com o teu prémio da lotaria da história,
mesmo que em campanha
te tenhas coberto de glória!

Acabaram por te meter
num avião “low cost”
ou num barco de lata,
ferrujento,
deram-te um pontapé no cu
ou cravaram-te a tampa do caixão de chumbo.
"Bye, bye, my friend.
Fuck you, man”.
Nem sequer te desejaram
"Oxalá, inshallah, enxalé,
que a terra te seja leve!"

País de merda"...
Tinha razão o polícia, racista,
que te quis barrar a entrada
no aeroporto de Saigão
(ou era Lisboa ?
ou era Amsterdão?).

Quem disse que os polícias
de todo o mundo
são estúpidos ?
Até o polícia racista
entende o sofisma
do país de merda:
“Pensando bem,
soletrando melhor,
país de merda,
país de merda,
só pode ser o meu”.

Os gajos estavam fartos de ti,
meu irmão,
meu camarada,
meu amigo.
Os gajos pagavam-te,
se preciso fosse,
para se verem livres de ti,
vivo ou morto,
devolvido à procedência.

“I want you, alive ou dead”,
porque na contabilidade nacional
tudo tem de bater certo,
diz o cabo arvorado.
Todo o que entra, sai,
é o deve e o haver
do escriturário, encartado,
mesmo que seja merda:
“Garbage in, garbage out”,
se entra merda, sai merda.

Procuraram-te por toda a parte,
do Minho ao Algarve
do Cacheu ao Cacine,
só te queriam bem comportado,
escanhoado,
ataviado,
de botas engraxadas,
se possível herói de capa e espada,
medalhado, condecorado,
de cruz de guerra ao peito,
mesmo que viesses amortalhado.

E tu ?
Sabias lá tu
o que era a pátria,
onde ficava a tabanca da pátria,
onde começava e acabava o chão da pátria ?
Muito menos sabias
a geografia da guerra,
Aljubarrota,
Alcácer Quibir,
Vimeiro,
Waterloo,
La Lys,
lha do Como,
Guidaje,
Gadamael,
Dien-Bien-Phu,
Madina do Boé,
Ponta do Inglês,
Madina Belel...

Conhecias lá tu
da pátria a anatomia e a fisiologia ,
o intestino grosso e delgado,
o que é que a pátria comia,
o que é que a pátria defecava,
ou até mesmo o que é que a pátria sentia e pensava,
se é que a pátria deveras sentia e pensava.

Queriam-te sedado,
anestesiado,
amnésico, de preferência,
sobretudo amnésico.
alienado,
aculturado,
desformatado,
paisano,
só assim eles te queriam de volta
ao teu anódino quotidiano,

Meu irmão,
meu pobre camarada,
fizeste por eles
o trabalho sujo
que compete a qualquer bom soldado
em qualquer guerra.
Mas nem como soldado eles te trataram,
nem sequer como mercenário
te pagaram,
em espécie ou em géneros.

Afinal a guerra acabou,
como todas as guerras acabam,
até mesmo a guerra dos cem anos
teve um fim
com o seu rol de mortos, feridos e desaparecidos.
“Para quê mexer agora na merda, ó nosso cabo ?”,
pergunta o sorja da companhia.
“Boa pergunta, meu primeiro,
mas há muito já que eu não cheiro,
a guerra embotou-me os sentidos”.

Luís Graça
Lourinhã, Vimeiro, 18/7/2015,
Reconstituição histórica da batalha do Vimeiro (21/8/1808)
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14846: Manuscrito(s) (Luís Graça) (61): Poema interpretativo da batalha do Vimeiro (, dedicado ao Eduardo Jorge Ferreira)

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14105: Manuscrito(s) (Luís Graça) (42): Requiem para um paisano... (à memória do meu infortunado camarada Luciano Severo de Almeida)


Foto nº 1


Foto nº 2

Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Sinchã Mamadjai, ou Sinchã Qualquer Coisa... Algures, numa tabanca do regulado de Badora, em autodefesa, reforçada pelo 3º Gr Comb, com os respetivos furrieis mlicianos: o  Luciano Almeida (foto nº 1) e o Luís Graça [henriques] (foto nº 2), junto a um dos abrigos e posando com o RPG 2 para a fotografia... O fotógrafo foi o Arlindo Roda.

Fotos © Arlindo Roda (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]







Regressávamos da guerra, com a morte na alma e mazelas no corpo, num navio, quase fantasma,  da marinha mercante,  da Companhia Colonial de Navegação.

Como se tudo continuasse como dantes e a vida corresse normalmente, "contra os ventos da história" (como então se dizia), nessa viagem de regresso à pátria servia-se a bordo, na chamada classe turística, reservada aos sargentos: (i) uma sopa de creme de marisco; (ii) seguido de um prato de peixe (pescada à baiana); e (iii) um prato de carne (lombo estufado à boulanger)... sem esquecer (iv) a sobremesa: a bela fruta da época, o bom café colonial, o inevitável cigarro a acompanhar um uísque velho, antes de mais uma noitada de lerpa ou de king...

Obrigado ao Humberto Reis e à sua famosa "memória de elefante" por me lembrar que o 17 de Março de 1971 foi o primeiro dia do resto das nossas vidas...  E, nas costas da ementa de um desses jantares a bordo, talvez o do último dia, deixámos escritos os nossos nomes e moradas. Dois de nós já não estão entre os vivos: é o o caso do Luciano Severo de Almeida (que morava no Montijo, desaparecido em trágicas condições e em data que ninguém sabe ao certo), bem como do António Branquinho que voltou para a sua terra, Évora, e que morreu em 2014, de doença...   


Quando soube da triste notícia da morte do Branquinho, não consegui  despedir-me dele sem  lhe reservar um lugar à sombra do poilão da nossa Tabanca Grande, sob o nº 661...  Quanto ao Luciano Almeida, a esse, já em tempos lhe fizera um poema ("Requiem para um paisano") tendo prometido publicá-lo aqui, neste blogue,  "um dia destes"... Pois esse dia  chegou hoje, o primeiro dia do ano de 2015 quando vão 44 anos do nosso regresso no T/T Uíge... Quis, com este gesto,  que  a memória destes dois meus camaradas de armas  não ficasse  por aí, na vala comum do esquecimento...

Quanto aos outros camaradas da lista, felizmente  ainda estão vivos e recomendam-se: o Piça, o Jaquim, Fernandes, o  Tony Levezinho, o Humbertos Reis... Ficámos todos amigos... para sempre !

 
Foto:  © António Levezinho (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]}

Requiem para um paisano

por Luís Graça


(À memória do Luciano Severo de Almeida,
meu camarada
da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, 

Contuboel e Bambadinca, 1969/71,
e dos meus demais camaradas da Guiné, 
desconhecidos,
que morreram,
de morte violenta,
já como paisanos, 

depois do regresso á pátria,
por homicídio, suicídio ou acidente)



Disseram-me que tinhas morrido,
meu infortunado camarada,
já muito depois do nosso regresso a casa.
Talvez nos finais dos anos 70
do século passado, 
não posso precisar.
Morrido, lerpado,
para usar o nosso calão de caserna
bruto e feio, 
Lerpado, assim, sem mais nada,
sem uma palavra,
sem uma despedida,
sem uma oração,
talvez até sem um ui nem um ai,
sem um grito,
sem um ato de contrição,
sem um último desejo,
nem sequer um xeque-mate!

Morrido, de morte matada,
morrido, como um cão,
de um tiro na nuca,
como os cães que abatemos,
uma noite, em Bambadinca,
a Noite das Facas Longas,
lembras-te?!


Disseram-me que tinhas sido encontrado,  
morto,
longe da nossa Guiné,
dessa terra verde e vermelha que tu amavas,
longe da tua Sinchã Mamadjai,
e da morança da tua bela Fatumatá,
de mama firme,
que se escapulia para a tua morança,
nas noites de lua cheia,
em que uivava a hiena…
Longe do tarrafo do Geba,
da Ponta Varela e do Poindom, 
do Mato Cão,
dos Nhabijões,
da Ponta do Inglês,
da Missão do Sono,
da Ponte do Udunduma,
da orla da bolanha,
do poilão,
do bagabaga…

Onde, afinal ?
Não longe dos teus verdes anos,
não longe do arco-íris do teu céu de menino.
perto do teu Tejo,
numa valeta de uma rua escura da tua cidade…
Ou de um qualquer subúrbio triste e cinzento
de cidade nenhuma.

Que morte tão crua, a ser verdade,
oxalá fosse boato a notícia de fait-divers
que alguém leu no jornal,
a notícia de uma morte 
em que eu não te (re)vejo.
Oxalá, meu camarada,
tenhas simplesmente desaparecido,  emigrado,
tenhas sido sequestrado,
tenhas mudado de código postal
ou até de identidade,
sempre era menos mal.
E poupavas-me este requiem,
o teu elogio fúnebre,
que é a pior das missões
que se pode pedir a um camarada de armas.
Disseram-me (, mas eu não quis crer,)
que tinhas sido morto,
sem honra nem glória,
depois de cumprido o teu dever
para com a Pátria que te foi madrasta,
cruel Jocasta.
Já depois da última nau da Índia ter naufragado
no mar da Palha da tua infância,
já muito depois dos últimos guerreiros do império
terem feito o espólio de todas as guerras
e o relatório da sua errância
desde Quinhentos.


No século passado, meu amigo,
no século transato, meu irmão!...
Lembro-me de o velho Uíge,
navio da velha Companhia Colonial de Navegação,
nos ter devolvido a terra,
à nossa cidade e capital.
Nas praias de Alcântara,
no cais da saudade,
no cais de pedra donde partíramos,
quase às escondidas,
vindos do comboio noturno e soturno
de Santa Margarida,
do Campo Militar de Santa Margarida.
Não sei quem te esperava
nesse dia 22 de Março de 1971,
mas seguramente os mesmos entes queridos
que me esperavam a mim, a todos nós, 
que ali, no cais,
passávamos à condição de paisanos,
depois de nos depedirmo-nos,
bebendo o último gole de uísque sem gelo
e fazermos promessas de amizade para sempre.

Vestidas as calças à boca de sino,
e as camisas às florinhas,
regressávamos ao doce lar,
com as exóticas bugigangas compradas no Taufik Saad,
ao lar e à rotina das nossas vidas, 
pequenas,
insignificantes.
E a uma outra guerra,
a da lufa lufa do quotidiano.
com outras picadas,
com outras minas e armadilhas,
com outras emboscadas e golpes de mão.

Tu tinhas um lar, 
todos tínhamos um lar,
uma família, 
alguns um emprego,
muitos uma namorada 
ou uma noiva 
ou uma mulher à nossa espera…
Mas eu…, eu, o que sabia de ti ?
O que sabíamos uns dos outros ?
E dos nossos sonhos ?
Muito pouco, afinal…
Casaste ? 
Tiveste filhos ?
Não, não tiveste tempo de ser bom filho, nem bom pai,
muito menos avô bababo…


Nunca mais voltei a rever-te,
em todos estes anos,
em que tantas coisas aconteceram,
para o pior e o melhor,
na nossa Pátria,
uma palavra, repara,
que saiu do léxico dos tugas,
e já não se usa mais…
A Pátria...
Afinal o que é a Pátria, camarada ?


A imagem mais forte, não a última,
que retenho de ti,
é a do menino e moço
que saiu, fardado, garboso,
da casa de seu pai e sua mãe…
É a imagem do puto reguila,
quiçá rebelde, 
temperamental,
belicoso mas generoso,
da margem sul do Tejo.
Com jeito para o desenfianço,
o desenrascanço,
que a vida era dura para os homens
da CCAÇ 12, brancos e pretos.


Retenho ainda a imagem do nosso patético duelo
no bar de sargentos de Bambadinca,
tendo por arma, letal,
uma garrafa de VAT 69
(Ou era Jonhnie Walker ?
Ou White Horse,
a tal do cavalinho branco ?
Já não me lembro do rótulo,
sei apenas que era scotch, e do bom,
daquele que vinha From Scotland
for the Portuguese Armed Forces with love!,
da Escócia para os tugas
com amor)…


Um duelo de morte, 
gole a gole,
até ao gole final,
em menos de 15 minutos!...
Com árbitro e tudo,
apostas a dinheiro,
mirones e claques de apoio,
como mandavam as regras
dos apanhados do clima de Bambadinca!

Apanhados do clima, dizes bem,
exaustos,
usados e abusados,
filhos de Sísifo,
filhos de um deus menor,
condenados ao mais insano dos suplícios,
uma guerra a que chamavam
de contraguerrilha,
do gato e do rato.
de subversão e contrassubversão…
Não, não, era a roleta russa,
ninguém tinha pistolas de tambor,
era o fado lusitano,
era o fado da Guiné,
meu camarada,
meu amigo,
meu irmão,

Era a nossa triste condição,
era a nossa quiçá estúpida,mas viril, 
maneira de matar… o tempo,
o tempo em tempo de guerra,
o tempo de espera entre uma e outra operação,
o tempo de espera que podia ser entre a vida e a morte.
Era a insanidade mental,
era a raiva, traiçoeira,
era a lucidez da loucura a tomar conta de nós…. 

Foi esse fado que te matou,
essa maldita toxina,
essa adrenalina,
que trouxeste das águas do Geba 
e das bolanhas do Corubal,
e que te impedia de parar para pensar,
simplesmente parar,
simplesmente pensar,
simplesmente viver,
simplesmente respirar
à tona de água.
meu irmão,
meu camarada.
meu amigo.

Foi o sobressalto da vida,
foi a vida em sobressalto,
foi a vida em saldo,
foi a alma em carne viva,
foi a dor em lume brando.
Foi isso que te matou.
No pós-guerra,
na guerra dos paisanos.
Foi isso, 
foi a Guiné que te matou.
Ao retardador.
Ou não ?!


v10 1jan2015


__________________

Nota do editor:

Último poste da série > 14 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14027: Manuscrito(s) (Luís Graça) (41): Maresias, Lisboa, Tejo, memórias, amnésias... Parte II: O Terreiro do Paço e a(s) cenografia(s) do poder

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13330: In Memoriam (191): António Manuel Martins Branquinho, natural de Évora (1947-2013), ex-fur mil at inf, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)... Para que a sua memória não fique na "vala comum do esquecimento"


Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) e CCAÇ 12 (1969/71) > Natal de 1969:  da esquerda para a direita; de pé, Luís Manuel da Graça Henriques (fur mil ap armas pes inf); se não engamo, o 2º sgtr Rui Quintino Guerreiro Daniel (2º srgt mecânico auto, CCS/BCAÇ 2852), ; 1º srgt cv Fernando Aires Fragata, fur mil enf João Carreiro Martins; na 1ª fila, os fur mil Jaime Soares Santo (SAM), António Eugénio da Silva Levezinho (Tony) (at inf, 2º pelotão), Amtónio M M Branquinho (at inf, 1º pelotão) e Humberto Reis (at inf op esp, 2º pelotão)

Foto: © Humberto Reis  (2006). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: L.G.)




Xime> Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Cais do Xime > Reconheço apenas ao centro o Fur mil At Inf António Branquinho, da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)... Com o seu inseparável lenço preto ao pescoço e, se não erro, uma boina preta à fuzileiro...

Foto: © Arlindo Roda  (2010). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: L.G.)


Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > A (uma das) equipa(s) de futebol da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, de camisola branca e crachá da companhia. Na primeira fila, reconheço, da esquerda para a direita, o 1º cabo cripto Gabriel Gonçalves (que também cantava e tocava viola), o alf mil op esp Francisco Moreira (1º pelotão), o fur mil Arlindo Roda (3º pelotão , o Arménio (1º pelotão) e o João Rito Marques, o nosso cabo quarteleiro.

Em cima, e da esquerda para a direita, reconheço o fur mil at inf António Manuel Martins Branquinho, o 1º cabo Branco, o sold condutor auto Alcino Carvalho Braga, o sold básico João Fernando R. Silva, um elemento de que não me ocorre o nome (mecânico? transmissões?) e , por fim, o 1º cabo aux enf Sousa.

Foto: © Arlindo Roda (2010). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: L.G.)



A bordo do T/T Niassa, a caminho da Guiné >  24 a 30 de maio de 1969 > Da esquerda para a direita, o 1º srgt cav Fragata, os fur mil António M M Branquinho (1947-2013),  José Fernando Almeida, Humberto Reis, António Fernando Marques e o alf mil José António Marques Rodrigues (falecido em 2011, morava então em Torres Novas).

Foto: © José Fernando Almeida   (2014). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: L.G.)


A bordo do T/T Niassa, a caminho da Guiné>  24 a 30 de maio de 1969 > Zé Fernando Almeida, Humberto Reis, António Branquinho e José António Rodrigues


Guiné > Zona Leste >  Região de Bafatá > Contuboel > CCAÇ 2590 /  12 (1969/71) >   O Branquinho (à esquerda) e o Fernando Almeida (à direita), à saída da "psicina" de Contuboel.

Foto: © José Fernando Almeida   (2014). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: L.G.)


Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) >  Xitole, agosto de 1970... De pé, o Levezinho e o Coelho (fur mil enf, CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72); na primeira fila, o Roda e o Branquinho.


Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) >  Cais do Xime, julho de 1970 ... O Levezinho (?) abraça o nosso "pastilhas", o João Carreiuro Martins, sob o olhar do Branquinho...


Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > O Branquinho no Xime...


Fotos (e legendas): © António Levezinho (2014). Todos os direitos reservados. (Edição: L.G.)


1. Só há dias soube, com tristeza, da morte do meu amigo e camarada Branquinho, António Manuel Martins Branquinho, que vivia em Évora, na Rua Heróis do Ultramar e era, julgo eu, natural de Évora, onde há pelo menos duas famílias Branquinho, nas pesquisa que fiz na Internet.

Soube na notícia através do Jorge Cabral, em Monte Real, no dia 14 do corrente. Perante a minha estupefacção, o Jorge confirmou a notícia junto do António Fernando Marques, também ele presente, com a Gina, no nosso IX Encontro Nacional. Pedi uma terceira confirmação, ao José Fernando Almeida, organizador do último encontro do pessoal de Bambadinca 1968/71.

Eis a resposta, de 23 do corrente, do Zé Fernando, o nosso fur mil de transmissões (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)

 (...) Boa tarde,  Henriques:  (...) Sim, o Branquinho faleceu há ano e meio, falei por telefone com a viúva que se encontra ainda muito fragilizada,  não quer falar sobre isso. Passou o telefone a uma vizinha, que me informou da situação e pediu para não ligar mais. (...)

No mesmo dia mandei um mail ao Zé, e a outros camaradas da CCAÇ 12 (que integram, a nossa Tabanca Grande) bem como ao César Dias e ao Fernando Hipólito que fizeram a recruta e/ou a especialidade no CISMI; Tavira, com o Branquinho, em 1969:

(...) Obrigado, Zé Fernando! (...) Quanto ao que me contas sobre o Branquinho... É triste saber a notícia um ano e tal depois. Mas é assim a puta da vida, cada meco para o seu canto, a falar sozinho e a morrer sozinho... Ele também nunca nos procurou, que eu saiba, apesar dos nossos SOS... Espero que ele tenha conseguido, em vida, fazer o luto do passado... Muitos camaradas nossos puseram uma "pedra no vulcão" e mostram-se incapazes de olhar para o passado e integrarem a guerra, a Guiné, no seu "portfólio vivencial"... A ideia do blogue (e da Tabanca Grande) é ajudarmo-nos uns aos outros nessa espécíe de catarse que temos de fazer...

Tens fotos dele, de encontros passados?... Julgo que ele nunca foi a nenhum encontro, nem a Fão, Esposende, em 1994.

Vou dar a notícia, no blogue, se não te importas, usando-te como fonte de informação. Ele era de 1947, e terá morrido em 2013, o ano passado. É isso? Gostava de fazer um "In Memoriam"... Passámos juntos mais de 2 anos intensos, desde a nossa mobillização em março de 1969... Ele tem cá amigos e camaradas, do tenpo do  CISMI (César Dias, Fernando Hipólito...), bem como da nossa da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, e ainda das unidades que passaram por Bambadinca (BCAÇ 2852, BART 2917, e subunidades adidas) (...)




Tavira > CISMI > 1968 > Foto nº 7 > O César Dias, natural de Torres Novas (á esquerda) e o António Branquinho, filho de Évora (à direita)... Ambos foram parar à Guiné... O Branquinho à CCAÇ 2590 (mais tarde, em 18/1/1970, CCAÇ 12) (Contuboel e Bambadinca, 1969/71).

Foto: © César Dias  (2014). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: L.G.)



Tavira >  Cismi > 1968 > 3ª companhia (instrução de especialiade: Atirador de infantaria) > O Branquinho é o 3º da primeira fila a contar da direita... O Levezinho é o 3º da 2ª segunda, de é, a contar também da direita. Não consigo identificar o Fernando Hipólito.


Tavira >  Cismi > 1968 > 3ª companhia (instrução de especialidade: Atirador de infantaria) > Lado esquerdo do grupo


Tavira >  Cismi > 1968 > 3ª companhia (instrução de especialidade: Atirador de infantaria) > Lado direito do grupo > O Branquinho é o 3º da primeira fila a contar da direita... O Levezinho é o 3º da 2ª segunda, de é, a contar também da direita.



Tavira >  Cismi > 1968 > 3ª companhia (instrução de especialidade: Atirador de infantaria >  O Branquinho é o 1º da primeira fila a contar da esquerda..  

Fotos: © Fernando Hipólito   (2014). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: L.G.)


2. O Tony Levezinho mandou-nos o seguinte mail, em 23 do corrente:

Olá, Luis:

Agradeço-te o empenho no esclarecimento/confirmação da notícia sobre a morte do António Manuel Martins Branquinho.

Tens razão, andamos cada um para seu canto e, tal como foi este o caso, é preciso mais de um ano para se saber que mais um de nós parte. Recordo do Branquinho um rapaz puro, com uma certa tendência para a confrontação verbal, não obstante, ou talvez, também por isso, um camarada leal.

Um abraço e cuida dessa tua recuperação. 
Tony



Tavira, Cismi > 1968 > Semana de campo >  Do lado direito, o Fernando Hipólito e o António Branquinho. Do lado de esquerdo, dois aspirantes milicianos, instrutores.


Tavira, Cismi > 1968 > Semana de campo >  O Fernando Hipólito (de pé) e o António Branquinho (de cócoras).

Fotos (e legendas): © Fernando Hipóliti  (2006). Todos os direitos reservados. (Edição: L.G.)


3. Por sua vez, o Césat Dias escreveu seguinte, também na mesma data:

Olá Luis, tenho sabido que estás a recuperar bem, espero que continues.

Quanto ao Branquinho, também não sabia e fiquei também surpreendido, embora nunca tenha contactado com ele depois de Tavira, fica-me a lembrança dum Alentejano, moço muito alegre que contagiava quem estivesse com ele. Tenho uma foto com ele onde podes testemunhar a sua maneira de estar na tropa, vou-te enviar essa e mais alguma onde ele esteja.

Em boa hora tiveste a ideia deste Blogue, pois cada vez somos menos, e assim ficará o testemunho da nossa participação em terras da Guiné.

O Branquinho fez a recruta e especialidade na 3ª companhia do CISMI, acompanhou durante esses 6 meses com o Levezinho, o Hipólito e outros que estiveram convosco em Bambadinca, eu só estive com ele na recruta, na especialidade era nosso vizinho, como sabes.

Essas fotos a cor, são do Hipólito, eram na especialidade, penso que o reconheces, se não conseguires diz que indico-te.

Um abraço, e agardeço-te a atenção,
César Dias


4. O Fernando Hipólito também nos mandou, a 24, duas fotos a preto e branco, com a seguinte mensagem:

 (...) Luís Graça e César

Junto ennvio duas fotos do António Branquinho no CISMI, em 1968:

(i) A primeira foto, com aspirantes, nossos instrutores, mais eu e ele;

(ii) A segunda foto, também na semana de campo, ele e eu. 

Abraço, 
Hipólito (...)


5. Também o José Fernando Almeida nos mandou fotos a  24:


Boa Noite, Henriques

Envio-te algumas fotos do Branquinho. Em Contuboel após termos saído da Piscina do Geba , e no Niassa. (acho que consegues identificar todos). Tenho algumas no Brandão mas tenho que as procurar e digitalizar.

Como o Levezinho diz e com justiça, o Branquinho era muito frontal. A quando da Op Abencerragem Candenete onde morreram seis  homens, entre eles o picador Seco Camará, o capitão à chegada das viaturas a Bambadinca perguntou ao Branquinho que tinha acabado de saltar da viatura,  como é que tinha sido. A resposta pronta do Branquinho:
- Se quer saber como foi, tivesse ido. 

Ficou tudo por aí.

Envio-te também a Lista dos falecidos da CCAÇ 12 de que tenho conhecimento, o Sousa diz que está incompeleta .

Cumprimentos, 
Fernando Almeida


6. Por sua vez, o Jorge Cabral informou-nos, ontem,  que "o  O António Branquinho esteve presente num encontro em Montemor há muitos anos". Eu, por mim, acho que nunca mais o vi, desde o nosso desembarque do T/T Uíge, em Lisboa... Mas sempre ia perguntando por ele. Se fui algum encontro mais do pessoal de Bambadinca, não sei. Mas tenho pena de ele ter partido e eu nunca lhe ter podido dar um abraço de amigo e camarada... Em março de 1971, ele morava na travessa do Barão, nº 5, em  Évora. Deve-se ter casado e mudado para a Rua dos Heróis do Ultramar. Não tive lata de telefonar à viúva. É possível que ele tenha filhos e que estes gostassem de ver estas fotos do pai... Tenho o nº de telefone, talvez um dia destes telefone...



Foto © António Levezinho (2006). Todos os direitos reservados

N/M Uíge > 17 Março de 1971 > Dia da partida de Bissau para Lisboa. Regressávamos da guerra, com a morte na alma e mazelas no corpo, num navio da marinha mercante da Companhia Colonial de Navegação (uma empresa, fundada em Angola em 1922, para assegurar os transportes marítimos das colónias portuguesas com a Metrópole, sendo o paqueteVera Cruz o seu navio mais emblemático, e que não teve tempo de fazer o branqueamento do seu nome, já que o termo colonial não era politicamente correcto no início dos anos 70...).

Como se tudo continuasse como dantes e a vida corresse normalmente, "contra os ventos da história" (como então se dizia), nessa viagem de regresso à pátria servia-se a bordo, na classe turística (reservada aos sargentos): (I) uma sopa de creme de marisco; (II) seguido de um prato de peixe (Pescada à baiana);  e (III) um de carne (Lombo Estufado à Boulanger)... sem esquecer (IV) a sobremesa: a bela fruta da época, o bom café colonial, o inevitável cigarro a acompanhar um uísque velho, antes de mais uma noitada de lerpa ou de king... 

Obrigado ao Humberto Reis e à sua já famosa "memória de elefante" por me lembrar que o 17 de Março de 1971 foi o primeiro dia do resto das nossas vidas... 

Nas costas da ementa de um desses jantares a bordo, talvez o do último dia, deixámos escritos os nossos nomes e moradas.. Alguns de nós nunca mais se voltaram a encontrar: foi o caso do Luciano Almeida (que morava no Montijo,, desaparecido em condições, em data que ninguém sabe ao certo), bem como António Branquinho que voltou para a Évora... Dizia-me que estava reformado da Segurança Social. Numa pesquisa na Net, fui encontrar o seu nome, em 21 de janeiro de 2000, como chefe de repartição da subregião de saúde de Évora, ARS do Alentejo.

O Piça, a esse,  encontrei-o para aí duas ou três vezes... O Levezinho e o Humbertos Reis acabaram por ser meus "vizinhos"... Mesmo assim, ficámos todos amigos... para sempre ! E é por isso que não sei despedir-me do Branquinho sem lhe reservar um lugar à sombra do poilão da nossa Tabanca Grande, o nº 661... Para ele vir ter connosco, com o seu ar gingão, meio fadista meio pegador de touros, meter conversa e sentar-se à nossa beira... Ao Luciano Almeida, a esse, já em tempos lhe fiz um poema  ("Requiem para um paisano") que hei-de publicar aqui um dia destes... Para que a memória de um e de outro não fique para aí, na "vala comum do esquecimento", o Branquinho passa a integrar a nossa Tabanca Grande a título póstumo...

PS - Eis a lista (possivelmente incompleta, e que só inclui um camarada da Guiné) dos militares da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), já falecido (entre parêntese, o local de residência e o ano do falecimento):

António M.M. Branquinho (Évora) (2013)
José António Marques Rodrigues (Torres Novas) (2011)
José Marques Alves (Fãnzeres, Gondomar) (2014)
Luciano Severo de Almeida (Montijo) (s/d)
Manuel Costa Soares (Nhabijões,Bambadinca) (13/1/1971)
Tibério Gomes Rocha (Viseu) (12/6/2007)

Umaru Baldé (Amadora) (s/d)

Fonte: José Fernando Almeida (2014) 

[Observ. - 80 dos 100 militares do recrutamento local já devem ter morrido, tendo alguns sido fuzilados pelo PAIGC] [LG]

__________________